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Pensando bem


O táxi parou e desci irritado com a falta de gentileza do motorista, que, além de ter ignorado minhas perguntas, nem sequer se dispôs a abrir o porta-malas. Peguei a mala, levantei a alça e fui puxando até que o concierge veio em minha direção, me cumprimentou, apanhou a bagagem educadamente e bateu a porta do táxi, que saiu em disparada. Logo que entrei no lobby do hotel, pus a mão no bolso e senti um calafrio. "Meu celular ficou no carro", concluí, com um misto de desespero e consternação, ao rapaz da recepção. Ele perguntou se eu tinha a placa, o nome do motorista, mas tudo que eu lembrava era a companhia. Ele ligou, explicou a situação e ficaram de retornar, caso encontrassem algo. Como "caso encontrassem"? Segui para o quarto e fiquei sentado na cama por uns 30 minutos. Eu estava em Portland (eua) e todas as informações de que precisava para meu trabalho na cidade estavam no iPhone: endereços, contatos, mapas. Não conseguia pensar sobre o que fazer. Meu cérebro tinha ficado naquele táxi. Pelo menos a parte de que eu precisava agora: minha memória, meus dados, o Whatsapp das pessoas com as quais eu queria falar.

Depois de um tempo sentado e sem conseguir pensar em nada, minha mente reiniciou - como se eu tivesse apertado aquele botãozinho escondido do reset - e finalmente consegui refletir: eu estava mesmo exagerando. E tive também que admitir que meus amigos estão com toda a razão quando comentam sobre minha enorme dependência em relação ao meu iPhone. Não ao aparelho em si, claro, mas à possibilidade dele me conectar com o mundo e também com as pessoas. Afinal, o sumiço do acessório não poderia (ou pelo menos não deveria) me paralisar daquela maneira. E o mais curioso de tudo isso foi perceber como meus pensamentos clarearam, como um lampejo, aquele quarto de hotel. Precisei estar sozinho e desprovido de interação para me dar conta disso: com meus próprios botões e sem meu celular.

A verdade é que estamos, tanto eu quanto você, cada vez menos sozinhos e desconectados para dar espaço para as reflexões chegarem - ou, no mínimo, desatentos quando elas surgem. "Estamos muito ocupados sendo distraídos pelos feeds e pelas atualizações para nos darmos conta do que se passa dentro de nossa cabeça", sentencia o escritor americano Nicholas Carr, autor do livro A Geração Superficial - O que a Internet está Fazendo com os nossos Cérebros, crítico ao fato de a internet ter influenciado nossa impossibilidade atual de focar e de refletir. 

"Alguma coisa está mexendo com nosso cérebro, remanejando os circuitos neurais, reprogramando a memória. Nós não pensamos da forma que pensávamos e já nem refletimos da maneira que refletíamos", afirma. Nesses tempos em que até a aba do Facebook pergunta o que você tem em mente, as pessoas adotaram a forma de pensar com os botões, mas os do teclado. As reflexões, quando ocorrem, são compartilhadas à espera de likes. E não em busca de mudanças internas. "Passamos tempo demais com muitas janelas abertas, clicando em hyperlinks, lendo as reflexões alheias nos feeds das redes sociais, que nem paramos para nos concentrar nas nossas próprias", acredita Carr.

Sutilezas da vida

Frente a essa enxurrada e à urgência do consumo de informações, o escritor suíço Rolf Dobelli, PhD em filosofia da economia, tomou uma atitude radical e passou a ignorar o noticiário. Segundo ele, a necessidade de chamar a atenção do público levaria os meios de comunicação a privilegiar o sensacionalismo, o conteúdo mais superficial, como quem são os BBBs do momento ou a opinião daquele jogador de futebol sobre a política do país. Sem saber nos guiar sobre a relevância das coisas, acabamos perdendo a capacidade de lidar com as sutilezas da vida, de reflexão crítica. "Esse tipo de informação não agrega nada de concreto às nossas existências. Cite uma boa decisão que você não teria tomado se não tivesse acesso a uma notícia", desafia.

Com as publicações online fora dos seus compromissos diários, Dobelli passou a ter mais tempo para refletir sobre o que realmente importava na vida - dos livros à família. "Para não perder levianamente a capacidade que acumulei ao longo da minha atividade como escritor e empresário, comecei a listar meus erros sistemáticos de pensamento, junto com anotações e histórias pessoais", conta ele. Escrever, afinal, era sua forma de elucubrar. Essas anotações lhe permitiram criar um processo de reflexão, para, assim, reconhecer as armadilhas do seu próprio pensamento. Essa experiência pessoal foi o escopo do livro A Arte de Pensar Claramente, em que Dobelli divide suas impressões e defende que, mais do que qualquer outra coisa, a reflexão é a nossa tábua de salvação da irracionalidade - esse arroubo que, segundo ele, nos faz deturpar a realidade dos fatos. 

Para o estudioso, quando não paramos para colocar as ideias em ordem, aumentamos - e muito - o risco de cometermos os famosos atos irracionais: ataques de ciúme, rompantes de impaciência com a mãe (ou o marido, ou o filho), ou, ainda, seguimos cegos em um relacionamento sem futuro. "A irracionalidade nos impele muito mais a superestimar nosso conhecimento do que subestimá-lo. O perigo imediato de perder alguma coisa nos faz agir muito mais rápido do que a perspectiva de ganhar. Depois, quando consideramos retroativamente, os acontecimentos improváveis parecem muito mais prováveis, e as chances de ganho seriam maiores", acredita. Trocando em miúdos, refletir nos mostra que outros caminhos ou atitudes seriam possíveis. E perceber, por exemplo, que aquele ataque de ciúmes não era mesmo necessário, pois a moça do bar não estava realmente de olho no seu namorado. Assim, parar para pensar nos ajuda a não agir impulsivamente, nos incita a planejar, ou até voltar atrás na nossa história. E aprender com os erros, sem precisar passar (e sofrer) por eles de novo.

Pensar sobre pensar

Aprendemos a refletir desde cedo, ainda quando nossos pais nos deixam no "canto do castigo" para pensar sobre o que fizemos. A capacidade de reflexão é exatamente o que nos diferencia como humanos, algo que desenvolvemos durante a vida. Nos animais, a consciência está restrita à percepção do corpo e do ambiente ao redor. Dessa maneira, conseguimos olhar para trás e não apenas lembrar o que pensamos em um dado momento, mas conjecturar o que poderíamos ter pensado, o que deveríamos ter falado, como teríamos agido melhor. Refletir é, senão, pensar de novo, mais uma vez. "Na verdade, quando aprendemos isso, não o fazemos sozinhos. Precisamos ser conduzidos. Assim vamos discriminando nossas atitudes e suas consequências, se foram boas ou ruins", afirma a psicóloga Mariana Schwartzmann, especialista em adolescência. O treino acontece ao longo da vida e é preciso aprender a ter um olhar sobre quem se é e sobre o outro. "O julgamento de si mesmo é algo que embaça nossa capacidade de análise", ela diz. Ou seja, nem sempre conseguimos ver as coisas com tanta clareza quando estamos envolvidos nelas. "Se você tem uma visão sub ou supervalorizada de si mesmo, isso vai afetar a capacidade de discernimento. Por isso a reflexão não pode acontecer sempre sozinha, sem um outro para nos ajudar a mediar nosso olhar. Pode ser pelos pais ou irmão, por um amigo, um companheiro ou analista. Com afeto por você, mas com o máximo possível de isenção", explica Mariana. É por isso que, quando vivemos algo importante ou tomamos uma decisão transformadora, queremos o aval do outro, a opinião daqueles em quem confiamos. É uma forma de ratificar nossa atitude - ou retificá-la, se ainda houver tempo e vontade.

Esse, aliás, é um dos mais importantes desdobramentos da reflexão, segundo Mariana: ela nos faz pensar em nós, mas também no outro. "Estamos vivendo uma crise egocêntrica nos tempos atuais, em que refletir sobre suas ações em relação ao outro está em desuso. Daí tantas pessoas agirem de forma a garantir o seu desejo, sem pensar no que isso pode implicar em termos sociais e relacionais", defende. Se eu quero entrar logo no teatro, furo a fila. Se quero andar pouco para um local, estaciono em uma vaga proibida. Se quero algo que o outro tem, vou lá e pego. Se fico interessado na beleza de outra pessoa, desconsidero minha relação de lealdade com meu companheiro atual e sigo meu desejo. "Não refletir, antes ou depois, significa agir por impulso, atender apenas ao nosso instinto. É uma volta ao lado mais primitivo, animal." Ser um ser social e cidadão pressupõe avaliar nossa conduta perante o outro também, em se colocar no seu papel na sociedade.

De volta para o futuro

Já ocorreu de você, ao revisitar uma história, compreender algum fato de modo diferente, ter um entendimento distinto? O distanciamento de tempo permite esse tipo de reflexão. E, assim, conseguimos atribuir outras interpretações a um fato vivido, seja pela maturidade, seja pelo afastamento da emoção. "Esses diferentes olhares modificam nosso passado. Não os fatos em si, mas as interpretações que fazemos deles", afirma a filósofa clínica Mônica Aiub, do Instituto de Filosofia Clínica de São Paulo. Essas mudanças podem trazer novas formas de compreensão daquilo que se é hoje. Mônica conta o caso de um homem que lamentou nunca ter sido amado pelos pais. "Ele podia apresentar vários fatores que comprovavam sua afirmação, como a falta de colo, carinhos e abraços", diz.

Mas, ao se tornar pai, ele conseguiu perceber que, por elementos de sua cultura familiar, seus pais expressavam o amor de outra forma: o pai trabalhava em dois empregos para garantir um futuro melhor para ele, por exemplo. "A pretensa falta de amor, que trazia muito sofrimento no passado, uma vez compreendida como um equívoco de leitura, foi capaz de trazer novas possibilidades para o presente", explica ela. Observar tudo isso, afinal, pode revelar outros caminhos de compreensão da nossa história. "Muitas vezes fixamos o foco de nosso olhar em um único ponto, e negligenciamos muitos outros aspectos. Posso me condenar por uma determinada postura, simplesmente porque esqueci de avaliar as circunstâncias e observar que, naquele contexto, essa era a única postura possível", afirma Mônica. Há contextos nos quais esses questionamentos fazem sentido, mas em outros caberia perguntar: naquela época, eu tinha condições de enxergar o que consigo ver hoje em dia? Poderia ter agido diferente? A reflexão também pode ajudar a nos livrar de um sentimento de culpa ou arrependimento que insistimos em carregar, quando na verdade precisamos ser mais compreensivos e afetuosos com quem, um dia, fomos.

Como tomei emprestado para o título dessa matéria o nome da coluna que o Eugenio Mussak mantém aqui em vida simples, avancei algumas páginas para perguntar a ele qual a medida de se pensar bem: nem demais, a ponto do julgamento ser pesado, nem de menos, de maneira à reflexão ser muito superficial. Ele me contou sobre o conselho que Aristóteles deu a seu filho Nicômaco. 

O pensador sugere que o filho tenha "momentos de reflexão" frequentes, e que sempre se faça três perguntas essenciais: quem sou eu, quem eu gostaria de ser, e quais as providências para que eu venha a ser a pessoa que gostaria de ser. "Segundo Aristóteles, todos deveríamos nos fazer essas mesmas três perguntas todos os dias, assim acompanharíamos a evolução das respostas, e teríamos mais qualidade em nossos atos", diz Eugenio. A reflexão, portanto, é o melhor caminho para se chegar ao autodesenvolvimento.  "Autoconhecimento é vantagem. Quem se conhece bem e sabe quais são suas forças e fraquezas, sonhos e medos, valores e prioridades, no mínimo conduz sua vida com mais segurança", afirma. E com mais consciência, ouso dizer. Para olhar para trás e perceber que, até quando se perde, é possível ganhar. Nem que seja uma boa lição.
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